quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Recolhimento proibido

Quando eu pousei meus olhos nela, parecia querer fazer o impossível. Abriu um olho para me fitar, não como alguém especial, mas como outro transeunte qualquer a atrapalhar sua vida. Logo voltou a fechá-lo. Seu corpo delgado enrodilhava-se sem muita dificuldade sobre os dois assentos, a mochila cheia usada como apoio e travesseiro improvisado. Seus cabelos já não respondiam mais, rendidos ao vento que entrava generosamente pela janela do menino da frente, que ameaçava vomitar.
Não fui para o fundo, como de costume. Sentei-me na poltrona logo atrás dela. Não foi por sadismo, juro. Não sei dizer direito o porquê.
O ônibus voltou a se mexer, e senti que seu martírio recomeçou. A cantoria dos garotos – os incríveis garotos que explodem de alegria no início das mais cruentas manhãs – infestava o ambiente, perpassado pelo ar gélido do dia que aceitava o convite das janelas abertas. A profusão dos ritmos era frenética, e ela, estóica e firme, recusava-se a levantar. Aquilo me deixava um tanto inquieto, e diria que algo preocupado...
Arrisquei um olhar tímido por sobre o banco. E outro. Depois mais um. Ela remexia os braços e as perna em busca de uma posição favorável. Já havia desistido de vestir o casaco para cobrir com ele parte do corpo desprotegido. A testa enrugava, certamente por causa do barulho. Os olhos sempre fechados.
Eu não podia fazer nada. Eu sabia disso. Contudo, meu desejo – meu estranho desejo – era que ela simplesmente conseguisse descansar. Talvez alguém a estivesse esperando do outro lado do sono. Talvez tivesse dormido mal, ou estivesse doente. Mas naquela hora, nem pensei em nada disso. Recusei mais de uma vez os convites de meus amigos cantores só para permanecer ali, próximo da menina que eu não conhecia, em silenciosa prece para que ela deixasse aquele mundo por alguns instantes e conseguisse dormir.

Um comentário:

Unknown disse...

estranho ler seus textos aqui e não numa folha ou num caderno como de costume...
mas tão ótimos!
=)