sexta-feira, 26 de junho de 2009

Intertexto e cultura no funk brasileiro contemporâneo

Intertexto e Cultura no Funk Brasileiro Contemporâneo
(Atenção às notas de rodapé)
Erick de Schehenbauer (1)

1 – Introdução:

O funk é um estilo surgido nos Estados Unidos por volta da década de 1960, e suas origens diferem profundamente do funk brasileiro dos dias de hoje. Baseado inicialmente nas músicas Soul, Jazz e R&B, o funk cresceu em influências e pode ser considerado, hoje, o maior exemplo de cosmopolitismo musical do Brasil e, ousaria dizer, da América Latina. Um pensador contemporâneo o define como “Funk significa Pânico!” (SOBRAL, J. 2008), e o emérito e bonito pesquisador Waldyr Imbroisi o chamou de “Dança de acasalamento urbana” (IMBROISI, W. Não publicado ainda...)(2)
Reconhecemos antecipadamente a impossibilidade de mapear assunto tão amplo e tão aberto a areas de pesquisas como esse. Nossa intenção é puramente ressaltar alguns dos pontos mais notórios dessa arte, de modo a produzir um pequeno roteiro para o estudo do tema.

2 – Influência Latina:

A influência do texto e da cultura latinas é evidente no funk contemporâneo do nosso país, destacando-se a clara apropriação do estilo de Cícero. Em muitos casos, notamos um resgate filológico que subverte formas já canonizadas de verbos e permite à criação poética uma liberdade muito maior. Em Dança do Créu, o MC homônimo se utiliza desse recurso de forma magistral.
A palavra Créu vem do latim creo, -as, -are, -atui, -atum, que significa produzir, fazer crescer, criar, causar (DÉBORA, 2009)(3). No texto de MC Créu, a criação (feita por ele mesmo) se processa em ritmo cada vez maior, de forma cada vez mais vertiginosa, como se o processo criativo não pudesse se conter com uma única velocidade – assim que liberta, a inspiração se multiplica mais e mais, e permite que a criação seja feita em até cinco velocidades diferentes. Alguns críticos literários chegaram mesmo a supor que o eu lírico da canção fosse o próprio Deus, e as velocidades ascendentes representassem os dias que ele levou para completar a criação. A ausência dos dois últimos dias, em que ele criaria o homem e, enfim, descansaria, ainda é um mistério e é matéria de discussão entre os críticos (CALVINO, 2001)
O texto da Dança do Créu traz ainda uma advertência: O processo criativo não é para qualquer pessoa, exigindo dedicação e habilidade:
“Prá dança créu
Tem que ter disposição
Prá dança créu
Tem que ter habilidade
Pois essa dança
Ela não é mole não” (CRÉU, 2007)

Outros exemplos claros do uso de palavras latinas são Chatuba (Chatuborum, Gen. Plural de Chatubus), Bonde (Bonitas, -atis: de boa qualidade) e Pirigueti (derivado da expressão idiomática Chuta qui macumborum est).

3 – Profundo culto à forma

Assim como grandes escritores como Eça de Queiroz e Olavo Bilac, o culto à forma faz parte da escola funkista de poesia. Contudo, como toda escola revolucionária, o funk traz inovações nesse sentido, substituindo o apreço pela forma poética pelo culto à forma do corpo da mulher “amada”. É necessário tomar cuidado para não cair em um simplismo hedonista: o funk vai muito além de simples desejo carnal, sendo esse apenas possibilidade de sublimação – o que aproxima o funk do ideal pagão medieval, retomando os rituais em que se podia alcançar o sagrado por meio da realização sexual.
Um exemplo claro está na música Pernão Sarado, do MC Márcio G:
“Pernão sarado
Barriga de tanquinho e aí
Quebra miudinho, vai quebra miudinho
é carabina dona do meu coração”(G. M.)

O fato de o homem dirigir-se à mulher diretamente mostra o carinho e o amor que tem por ela. Indo de encontro ao hediondo costume moderno de falar do corpo da mulher de forma desrespeitosa e vulgar, cultivado entre os homens de nosso tempo, G. Valoriza a mulher e sua recepção, entregando-lhe a declaração maior de afeto. A mesma preocupação pelo universo feminino se afirma em Marcinho:
“Glamourosa, rainha do funk
Poderosa, olhar de diamante
Nos envolve, nos facina, agita o salão
Balança gostoso, requebrando até o chão” (MARCINHO, MC).

Com uma lírica que é um profundo misto entre o amor trovadoresco presente nas cantigas de amor, o romantismo puro e doce que evola dos palatos de Fagundes Varela e Álvares de Azevedo e uma retomada da concepção grega de ideal da beleza e do corpo, o funk consegue fazer com que sintamos as fímbrias mais íntimas do ser. A mulher deixa de ser objeto de comentários para ser a receptora de todas as belas palavras que há para ela. Reverberando a herança da Languedócia, esses geniais autores são capazes de refletir um mundo, uma poética, uma forma de vida que ainda não está consolidada, mas se reafirma a cada vez que uma dessas canções pode ser ouvida.

4 – O advento da nova forma estilística:

A forma é uma das características que mais encantam nessa nova geração poética:
“Rap das Armas
Parapapapapapapapapa
Paparapaparapapara clack bum
Parapapapapapapapapa

Morro do Dendê é ruim de invadir
Nois, com os Alemão, vamo se diverti (Rima de verbos com mesma terminação.... Rima pobre.)
Porque no Dendê eu vo dizer como é que é

Aqui não tem mole nem pra DRE
Pra subir aqui no morro até a BOPE treme
Não tem mole pro exército civil nem pra PM
Eu dou o maior conceito para os amigos meus
Mais Morro Do Dendê Também é terra de Deus” (CIDINHO & DOCA)

Nota-se a ausência de uma prisão formal: tudo pode, tudo é permitido, tudo é lícito na nova criação. As rimas são normalmente emparelhadas, e a escanção é improvável ou impossível de ser feita sem acompanhamento musical. Impressiona aos críticos a capacidade dos funkistas de aglutinar até três sílabas em uma única sílaba poética, desafiando as leis da fonética e da moral e dos bons costumes (LEITE, Y., CALLOU, D. 1997).
São marcas patentes a preferência pelas rimas pobres, a subversão da concordância verbal, nominal, moral, pessoal e animal, a desveiculação da flexão de plural estática –s e, sobretudo, a presença de refrão, recorrente nas poesias do movimento.
Embora sejam aparentemente incompreensíveis, os refrões sempre têm algo revelatório: em Rap das armas, representa-se o som de armas inexistentes, posto que nenhuma no planeta terra faz tal barulho. Isso pode ser interpretado como um pedido por paz, um manifesto contra a violência.
Em Pirigueti, famosos filósofos e filólogos tem convergido em supor que o refrão “Piri pipiri pipiri piri piri pirigueti” tem origem indo-árabe-siamesa, e remonta à mesma idéia de paraíso que influênciou o Shangri-lá, os Campos Elíseos e, de certa forma, até mesmo a concepção do céu cristão (COUVES, Z. 2001). Em Tremendo Vacilão, da incrível Perlla, temos “Tirap Tchoron! Tirap Tchoron! Oh! Ah! Oh! Ah!”, trecho de impossível transcrição fonética, que está na lingua Guapta, idioma falado pelos habitantes de Ikehon no livro A fantástica batalha entre um e outro, de Pedro de Alcântara, que nunca chegou a ser publicado.
A repetição é usada pelo funk como lembrete e aviso: É necessário repetir muito nos dias de hoje para ser ouvido(4). A recorrência dos mesmos benditos versos várias vezes é uma espécie de catequização: O funk também tem uma função transformadora da sociedade.

5 – Um novo léxico para um novo mundo:

Uma das maiores influências do funk nos tempos modernos é o grande léxico criado e divulgado por esse estilo. Em grande número, notamos o uso dos adjetivos bolada (Antes usado para se referir a um golpe recebido com uma bola), Pirigueti, Alemão (não, não é o cara nascido na Alemanha, mas sim uma retomada à fúria contra o nazismo e a opressão, representados pela Alemanha da segunda guerra), e glamourosa, que ganha novo significado na poesia funkista. Além destes, novos palavras e novos sentidos para palavras já usadas florescem, como em Late que eu tô passando (em que, visivelmente, late não significa o som feito pelo cão) e e Guabetona, na música pirigueti (que não significa nada).
Essa riqueza permite uma multiplicidade de interpretações e de utilizações dos vocábulos. Muito mais do que o Modernismo no Brasil, o funk vem para remodelar o vocabulário nacional.

6 – Conclusão:

Ao contrário do que se pensa, o funk não é um estilo degradante que incita, puramente, os desejos sexuais. Há trechos que mostram exatamente o contrário disso, como em “Máquina de sexo, Eu transo igual a um animal”, de Chatuba de Mesquita. Obviamente, quer-se dizer que o objetivo do sexo para o ideal funkistico é unicamente a procriação e nada mais.
Esta nova escola retoma de forma extremamente concisa tudo o que já foi arte até então, e dá um rosto próprio a um estilo que será estudado, tenho certeza, como um divisor de águas na história. Ao lado dos grandes nomes como Drummond, Bandeira, Camões e outros, irão figurar eternamente grandes homens e mulheres como Tati quebra barraco e seu fogão, a Gaiola com suas popozudas, Mr. Catra com seu Red Bull e, por fim, MC Marcinho com alguma outra coisa.

(1) Pseudônimo utilizado por Waldyr Imbroisi, graduando do curso de letras pela UFJF.
(2) Lembrem-se que estou escrevendo com um pseudônimo, então, posso falar bem de mim sem ser metido.
(3) Ao contrário do que se pensa atualmente, o verbo creo não deu origem apenas ao nosso criar, mas também a créu e, possivelmente, a creolina, remédio usado para matar lombrigas até a metade do século XX.
(4) Para maiores referências, consulte Em terra de surdo ninguém me entende porra! De Ivanun Caprendí Libras.

BIBLIOGRAFIA:
Funk, etmologia e jurídica: reflexões avulsas. Débora não sei o sobrenome, 2009, ed. Bambuluá
Presente para inimigo oculto. Waldyr Imbroisi, ainda não publicado.
Introdução à fonética e fonologia. Dinah Callou e Yvone Leite. 1997.
Piparapiru, onomatopéias sagradas. Zé das Couves. 2001, ed. Ponta de Aterro.
Livro dos segredos. Manél Calvino, 2001, ed. Toba ardente
O que é funk. Pergunta feita no Yahoo! Groups, respondida por José Cabral.