sábado, 25 de outubro de 2008

Guardanapo?

Hoje eu almoçava sozinho num banco da animada cantina da minha faculdade, a mesma comida engordurada de sempre ingerida com a calma de quem acha que comer devagar é bom pra saúde. O dia estava muito bonito e exageradamente quente, e nesses dias algumas raras e abençoadas rajadas de vento refrescam um pouco os corpos suados no vai-vem da vida. Um alento refrescante em uma cidade adolescente, que ainda stá decidindo se é quente ou se é fria.
E foi numa dessas rajadas repentinas que o rumo da minha refeição mudou abruptamente. Meu guardanapo foi levado por ela, dançando com o vento a despedir-se de mim, zombeteiro. Justo aquele espécime único, que como os copos ou talheres descartáveis, era capaz de fazer os funcionários da cantina se enervarem, gritar ou xingar minha mãe se eu pedisse outro humildemente...
Meu olhos desolados acompanharam o guardanapo enquanto ele encontrava repouso no chão frio. Parado, sozinho, inutilizado em sua nobre função de higienizar a boca depois de colheradas audaciosas de feijão e macarronada, o artefato de papel não representava mais nada.
Levantei-me de pronto e fui buscar o papel no chão, a fim de jogá-lo no lixo como mamãe me ensinara a fazer ainda na infância. Deixei ele largado em cima da pilha de copos, garrafas, embalagens de doces e outras coisas de aspecto desagradáveis que se avolumavam no balde de lixo, coroando minha consciência de bom menino. Porém, antes que eu pudesse voltar ao meu tão esperado almoço, outro vento desconcertante carrega aquele guardanapinho de sobre o lixo de volta para a pobreza do chão de cimento.
Me ergui mais uma vez do banco torto de tão usado, e desta vez deti-me um momento antes de tornar a apanhar o papel. Enrolei o fugitivo em uma bolinha e coloquei no balde forma segura – dentro de um copo usado, com um líquido que parecia Fanta Laranja. Agora sim, eu podia me julgar redimido com a responsabilidade de dar cabo daquele instrumento inútil.
Eis que, por um momento, começo a pensar naqueles que desistem de pegar seu guardanapo quando ele é levado ao chão pelo vento, por um esbarrão ou por uma eventualidade qualquer. Me eximo de pensar nos que atiram seus detritos deliberadamente para todo lado, pois esses eu não tenho ainda condições de entender... Contudo, aquele que vê o seu papel cair, mas lhe falta o ânimo para cumprir com a obrigação de deixá-lo no lixo é um pobre. Coitado de quem atribui a responsabilidade do guardanapo ao efeito que o levou ao chão, transferindo inutilmente uma culpa plenamente evitável... Talvez ele não se importe. Talvez ele realmente acredita que fez tudo o que podia, mas a queda foi inevitável ao simples papelzinho. Talvez ele se iluda com promessas falsas de múltiplos guardanapos em cantinas mais abastadas que a minha.
Mas pior do que isso é a incerteza. Que seria de mim, da cantina ou do próprio papel se eu tornasse a almoçar e não percebesse sua segunda queda? Se eu fosse embora, e o reencontro do meu delicado instrumento e da superfície áspera do chão jamais fosse conhecido pela minha cabeça? Teria eu culpa de tê-lo deixado inerte, abandonado? Ou a ignorância me teria redimido?
Olho para trás disfarçadamente para ver se minha bolinha continua bem guardada. Sim, lá está ela, dentro do copo que carrega a substância alaranjada – Tudo que eu precisava ver. Mas agora, minha mente é visitada por todos os guardanapos, propagandas, panfletos e mesmo folhas de matéria das quais me livrei depois da aula que jamais conferi se tinham conseguido seu lugar certo no regaço de uma lata ou um pote de lixo. Estou sendo assombrado pelos fantasmas do que não sei.
Só há uma opção: um compromisso. Peço perdão agora, e decido que a partir de então não deixarei mais meus resíduos por conta própria. Pode ser que um dia eu me canse de conferir cada coisinha que atire fora, e resolva fingir que não vi um papel de chiclete que não entrou na lixeira e caiu na poça d'água, ou uma embalagem de churros que saiu voando para longe... Mas isso é assunto pro futuro. Penso agora em nunca mais deixar de olhar pra trás e ver se cada coisa está em seu lugar.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Primeiras patologias...

Meu caro companheiro, antes de você adentrar nesse texto eu preciso informar-te que ele não é nada do que espera. Ou melhor, sei lá o que você espera, ou sei lá quem é você que está lendo, mas acima de tudo deixe isso de lado. Não espere. O tempo cuida de nos ensinar que não devemos esperar, só ter esperança.
Tenho vontade de escrever quando minha alma sente frio. É pena que isso não aconteça com a freqüência que eu gostaria, mas quem disse que desejo é suficiente? Bem, muita gente diz, mas não eu. Ou será que eu? O fato é que eu (se é que posso me chamar assim) me sinto bifurcado e partido. Como se o mim mesmo vivente que mora escondido quisesse tomar parte do teatro da vida, mas não encontrasse nenhum papel – os personagens estão todos muito bem divididos. O que resta para o eu continua sendo um quartinho nos fundos, sem janela e com parca iluminação, decorado por quadros baratos e um criado-mudo. Só.
O que eu sou hoje (Eu? Ao menos o que responde por eu) não é o que deveria ser. Ninguém é o que deveria, me dizem, mas talvez por isso mesmo não sejam. O que se lê às claras no semblante cansado das minhas máscaras de borracha é um conjunto de artifícios e manobras para. Para que? Ah, isso não tenho coragem de falar. Não sei se eu eu mesmo ou eu só, mas um de nós é um covarde... Ou os dois.
Isso deve estar cansando a você, leitor. Mas que leitor? Talvez tudo isso se perca pra sempre. Mas ao menos a mim isso já cansou. Sinto necessidade de chegar a um ponto final, mas não tenho nenhum caminho para seguir. Como encontrar o fim de algo que não se conhece um início? Acho que o que o eu (eu mesmo) acredita que merece ser não o é. Por isso o outro eu – se é que pode se chamá-lo assim – apareceu. Maléavel, esperto, confiável e gentil. E eu, que não pude me tornar assim, tive que dar espaço a um alguém mais que tomou o (meu) lugar.
Sinto que alguma coisa me falta, mas não me vem à mente nada. Talvez nuvens escuras, sentimentos puros e sem razão, descobrimento, fé no dia a dia. Saudade de não sei o quê. Quando fecho os olhos já me imagino dormindo. Isso é meio caminho para estar morto.
Outra coisa me incomoda profundamente (e isso incomoda ao eu de verdade, embora o eu mascarado e esperto não saiba mostrar muito bem o que há). Enquanto eu, um bem alimentado burguês de classe média, com roupas de frio e cama pra dormir estou em casa aumentando o volume da minha barriga e reclamando da vida, pessoas morrem de fome do outro lado da minha calçada. Heróis falsos derrubam assassinos inocentes, crianças choram por não encontrarem leite suficiente nos seios estéreis das mães. E eu aqui.
Frequentemente me vem à cabeça que aquele homem que hoje me pediu um trocado merece muito mais do que eu – O que não é difícil, seja lá de quem se trate. O doente que carece de tratamento não têm condições de pagar, ou mesmo de ter acesso à saúde. A menina que jamais reclamou do almoço engrossa a comida com o resto da farinha. A dona de casa chora porque não sabe mais ter fé. E aí uma contradição: Eu que acho que mereço muito mais também acho que não mereço nada – E cumpre lembrar que essas duas afirmações partem de um mesmo eu.
Como alguém pode ser tão cara-de-pau a ponto de reclamar da vida como “eu”?
Se o eu é tão confuso assim, justifica-se a criação de eu outro e sua ascensão. É mais fácil mostrar um eu pouco vivente e guardar o louco pouco sociável no quarto – aquele, lembram? Mas o eu renegado um dia sente falta de Ser.
E agora? Que sou eu para permitir que eu aja da forma como lhe convenha? (Não sei mais como usar os pronomes!) O eu verdadeiro é o que sou agora ou o que abandonei? Me parece que nenhum dos dois. Minha busca não termina com o fim de um pequeno texto escrito às pressas (e pressa por que?) numa noite escura de um dia de semana. Minha busca não termina. Talvez minha busca comece agora se eu tiver a coragem que eu preciso pra enfrentar os exércitos e muros que me separam do que quero Ser. Ser de verdade. Para isso, é preciso falar pouco, ser alegre, sair na chuva, pensar em Deus, comer pão puro. Minha maior dor é um dia ter desistido de mim.