sexta-feira, 17 de abril de 2009

Visão...

Não. Eu não sou o que pareço ser. O que você olha e vê e sabe que sou eu é uma imagem – uma interpretação. Sua visão. Umas construção que só seus olhos podem apreciar. Se mentira, se verdade, não sei. Conceitos muitos duros para mim.
Uma máquina de sorrisos e bons dias que esconde elegantemente a morbidez dolorosa que está lá dentro, onde se corrói com austeridade. Ele acredita que sempre irá suportar. Isso não se vê, se sente ou se adivinha – até porque adivinhá-lo pressuporia crer que isso existe (ou aceitar esse fato), e, inevitavelmente, estar sujeito ao insano risco de encontrar o mesmo em si.
Melhor não. Melhor continuar com a interpretação já consagrada e realidades construídas com mais condescendência. Afinal, qual “realidade” pode ser chamada assim? Qual não é uma mera – MERA – construção, simplesmente revestida pelos olhos de quem quer ver? Aquele mendigo... Um vagabundo ou um trabalhador maltratado pelo destino? Como você sabe? Porque você respondeu isso? Conhece sua vida, escutou a opinião de alguém ou está embasado de um ideal religioso? Sabe como é viver daquele jeito? Seu pai te estuprava ou sua mãe te batia?
Deus existe? Como sabes? Alguém te contou. A religião te mostrou. O Espírito Santo te tocou. Será que isso não aconteceu porque no nosso universo de construções, essa era uma “realidade possível”? Não acontece porque parece possível, porque há material que torne isso plausível? Quem te criou, e como foi??? Não faz sentido sem Deus porque ninguém te mostrou como seria sem ele. Você não leu Nietzsche ou Sartre ou Freud para ver como “o homem é” – e nem eu. Mas eu sei que eles estão lá. Existem. E o homem que hoje fala de Deus com toda a pureza pode ser um coitado envolvido por uma profundamente arraigada mentira social, inconsciente, vítima de complexas redes da própria cabeça malcuidada que descarregam-lhe loucuras na biologia do corpo. Êxtase religioso em endorfina. Ou pode ser alguém que se entregou verdadeiramente a Deus, abençoado semeador de luz, que encontrou onde se apóia o verdadeiro sentido da vida e está em busca de fazer nascer, em si e nos outros, a verdadeira felicidade. Que olhos estão vendo agora?... Mas, se você olhar, sempre, de um único modo, se nunca tentou encarar as pupilas opostas, ou não conheceu ou viveu suficiente para ver o outro lado, não se vê nada. Alguém(s) vê por você.
Talvez o homem seja realmente produto do meio até admitir que o é. Então passa a buscar liberdade. Daí para frente ainda não sei como é...
Mas eu não sou o que você acha que enxerga. O lado de fora é sempre paisagem de filme, a dar margens a lindas interpretações. O outro lado escreve, e talvez por isso seja de verdade. Enquanto primeiro vai se perdendo na incontável vastidão dos dias, e segundo se eterniza, com gosto de fome na boca.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Sem título...

A noite mansa e agradável deixava o calçadão com a rara beleza de um verão fresco. No ar, o cheiro de pós-chuva fazia bem a quem sabia senti-lo. A velocidade tresloucada com que as centenas de transeuntes cruzavam aquele pedaço da cidade todos os dias os impedia de, hoje, perceberem dois vultos caminhando entre eles em busca de algo mais que comida ou dinheiro, talvez atenção.
- Nos somos dois irmãos que viemos andando do Rio até aqui, minha senhora... – Dizia um homem negro, de barba rente ao rosto e agachado no chão. Ao seu lado erguia-se um imponente cão vira-latas, eminentemente branco e com manchas marrons pelo corpo, os dois ligados apenas por uma coleira que haviam ganhado noite passada de um senhor de meia idade. Vieram sozinhos a uma cidade desconhecida, em busca de oportunidades melhores e de uma vida nova, longe de uma violência que se acostumaram a evitar de perto. Por horas a fio, pediram algo que os pudesse ajudar no sustento do corpo e os mantivessem de pé até o dia seguinte.
As suas costas se encontram à porta de uma loja quando eles se sentam para descansar. Analisando o que tinham recebido, contou dois reais e trinta e cinco centavos, um vale transporte, uma bananada, biscoitos e um sanduíche feito pela mãe de algum aluno de ensino fundamental, renunciado carinhosamente. O homem acariciou atrás das orelhas de seu companheiro e abriu primeiro o sanduíche para dividirem. O dinheiro ficaria guardado, para garantir o almoço do dia seguinte. Ingeriram rapidamente o pão e os biscoitos juntos, mas o doce o homem comeu sozinho – O cão havia tomado remédio para vermes há poucos dias, e não lhe parecia conveniente dar-lhe bananada logo depois disso.
Não estavam satisfeitos, mas o alimento que ganharam fora suficiente para enganar o estômago até o dia seguinte. Amanhã, outra luta começaria. Deitaram-se lado a lado, sem saber o horário em que a loja abriria – o que podia lhes possibilitar problemas pela manhã. Abraçados, homem e cão adormeceram, guardando um exemplo de carinho que, aos outros, dava asco de ver.